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Conversa entre vizinhas

 

Andando, lentamente, sobre o asfalto molhado, a mulher de xaile negro parecia carregar uma vida sacrificada pelos anos. Indiferente ao mar que na costa barafustava contra as rochas, a velhota olhava o chão, submetendo-se às agruras da vida com a paciência dos grandes santos.

Chamava-se, simplesmente, Ana, nome que na pia lhe deu sua madrinha Francisca de Santa Clara - em homenagem à freira que, com Francisco de Assis, marcaram o apogeu monástico da Igreja.

Ana viu partir para sempre o seu António e ficou só. Os filhos saíram, há muito, para a América e Canadá, deixando a casa num silencio fúnebre, só interrompido quando a vizinha Josefa lhe bate à porta, todas as manhãs, para saber se, com o raiar do dia, Ana se levantara.

“Haja saúde!”- repete-lhe a amiga. 
“Vamos entrar!” - responde-lhe Ana.

Sentadas à mesa da cozinha, ambas falam das galinhas e do tempo e, de vez em quando, dos filhos que se foram ausentando na distância dos dias e dos anos. Falam como se rezassem à noite, sentadas na cama, alumiadas pela luz da vela mortiça. Nas suas mentes não há críticas nem azedumes, seja para quem for, como mandam os ditames da Santa Madre Igreja.

Josefa, uma vez por outra, recorda o seu homem:
“António tinha um coração de manteiga. Por tudo e por nada, lá vinha ele pedir: vira-me essa língua p'ra lá porque ninguém sabe o que nos pode acontecer. E era verdade. Quando o meu João se separou da mulher, por aquilo que tu sabes, foi um falatório nesses caminhos. Toda a gente falou mal dele por ter deixado a mulher e os filhos e ninguém quis saber o que tinha acontecido. Valeu que ele teve a sorte de receber carta de chamada da irmã do Canadá e p'ra lá foi. Se não, o seu nome e o dos pais tinha caído na lama.” ”Deus nos livre das bocas do mundo!” – atalhou Ana, de imediato. “Já minha madrinha dizia, Deus lhe dê o céu!, Quem não tem vergonha, todo o mundo é seu! E é verdade!...”

Após um prolongado silêncio Josefa suspirou:“Este mundo anda desvairado. No nosso tempo, as raparigas só saíam de casa para ir à vila, à escola da professora Nascimento, e não havia rapaz nenhum que nos tocasse. Minha mãe recomendava-nos sempre: Meninas, escutai bem: depois da escola vêm direitinhas para casa e não se olha p'ra ninguém; conta-se as pedras do caminho, que as meninas querem-se é em casa. Hoje?!...”

Como que confessando um pecado, Ana desabafou:
“A minha neta Joaninha...eu só queria que tu a visses, mulher, anda-me com uns calções curtinhos, por metade do joelho, em cima de umas meias pretas, compridas, rotas e traz-me os lábios pintados e as unhas grandes com vermelho arregalado. Deus me perdoe, minha querida neta!, mas parece-me uma mulher da vida. Bem lhe prega a mãe e o pai manda-lhe sempre bons conselhos, mas não há maneira. Na Escola nem sei em que ano vai. Anda p'raí por esses caminhos, de manhã à noite, com outras raparigas da sua idade...No nosso tempo, a gente não estudava tanto tempo, mas ia lavar roupa à Mouraria, aprendia a costurar e a bordar, sabia matar uma galinha, amanhar peixe, acender o lar e pôr o jantar na mesa... e quando casava, íamos limpinhas, cheirando a novo que nos podíamos gabar. Hoje? Quem pode pôr a mão no lume por essas meninas de cabelo pintado, enroladas com esses rapazes?”

“Não te apoquentes, Ana!”-continuou Josefa. “Já não é p'ra nós, mas o mundo vai vir a melhor, tenho a certeza. Tu sabes que não sou de modernices. Ando sempre com a saia abaixo do joelho, mas também já pensei que é demais. Deus não nos quer velhas e gastas, antes do tempo. Já bastam as contrariedades da vida que nos comeram a carne e os ossos. Não vês nas fotografias que o teu João manda da Amer'ca aquelas mulheres sempre bem prezadas e pintadas? Foram daqui umas pelintras, mas chegaram lá e fizeram-se umas senhoras. Eu penso que Deus não quer esta tristeza em que vivemos. Se continuarmos assim, vamos mais cedo p'rà cova...”

“Pois é verdade.”- respondeu Ana – “ Quem me dera pensar de modo diferente...não sei se ainda consigo ter a alegria de outros tempos, quando a gente andava por essas matanças de porcos, ajudando umas e outras e, ao fim do dia, mesmo cansadas que só Deus sabe! bailávamos a chamarrita mentes os donos da casa tinham convidados. Outros tempos... outros tempos...”

“Tá bom! já demos à língua, logo de manhã. Agora, vamos à vida que a morte é certa!” – rematou Josefa. “Sai-me desta casa, Ana, e vai por esses campos que o sol de Janeiro é como o luar: não tem parceiro!”

Josefa levantou-se, a muito custo, segurando as ancas e as pernas que já não a ajudam, e desceu os degraus do balcão, enquanto Ana, da porta da cozinha, acenava, vagarosamente: “Adeus!...até amanhã, se Deus quiser!”

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